28 de fevereiro de 2008

Água serpente - Francisco Cabral

*Francisco Cabral
Singrar o rio nos barcos de areia
abrindo a veia
do seu fluxo barrento.

Sangrar o Pomba para deter seu vôo
de quimera confinado às margens.

Despojar o rio das roupas de vapor
para vazar o visgo de seu clima,

Esgotar o rio Pomba para que revele
o ouro fino do leito, os saibros dos poemas.

*Francisco Marcelo Cabral

A casa morta - Antônio Perin

Em antigas noites adolescentes
entre perfumes de mangas e teias de aranhas
pelas frestas do soalho...
Luzes.

Sedas, cetins, brancas coxas
Nevoas de franceses perfumes
brilha o corpo da jovem capricorniana.
Olhos gulosos se lambuzam
em orgias voieristas.

A memória fantasmeia passado,
corre os quartos, porões e quintais
do velho casarão em cacos.

Ilustração de Altamir Soares

Antônio Perin

27 de fevereiro de 2008

O chefe - Ascânio Lopes

O valentão brigou com o chefe político
e então todo mundo se lembrou que ele era criminoso
e veio ordem da Capital para prendê-lo.
Os soldados se prepararam foram 30 jagunços para acompanhá-los.
O escrivão lavrou de véspera o auto de resistência à prisão.
Mas o bandido não resistiu abobado diante dos soldados da Capital.
e entregou-se docilmente.
Mas o chefe disse que era preciso matá-lo
pois o auto já estava lavrado e assinado.
Era impossível voltar atrás.

Ascânio Lopes (Ubá 1906 - Cataguases 1929)

É - se? Zeca Junqueira

O que ocorre no instante humano mais íntimo
em que do corpo a chama apaga e
esboroa-se a identidade,
o que é esse momento de tal ausência que torna o ser
irremediavelmente pretérito e incompreensivelmente longe
o que rege essa acachapante imobilidade
essa rigidez medonha que constrange o movimento dos vivos no
sarau da morte
o que se passa afinal no impenetrável instante em que o corpo cede?
É-se, então?
o momento é breu?
o instante é luz?
é magia?
terror?
agonia?
é traição cósmica?
é o nada?
o derradeiro silêncio divino?
é tudo jogado fora?
Esse maldito momento é o quê, meu Deus?!

Zeca Junqueira

Cata/catarse - Emerson Teixeira

Mário, poeta de tal
Ce ta errado, maioral
Cataguases é a única cidade alerquinal
Decifra-me ou defloro-te
Da velha estrada do horto
A reta do rio torto
Pomba
Bomba explode a pedreira
Guardar na memória tudo que for história.

Emerson Teixeira

21 de fevereiro de 2008

Passarinho - Janaína Ceribelli

Passarinho
tomou um tiro,
- Coitado!
Alguns dizem contrariados.
Outros se rebelam
contra tamanho ato de crueldade
- Oh!
E alguns pensam:
Quem será
que esqueceu largada
aquela espingarda de chumbinho
ali?!!

Janaína Ceribelli

Grande Circular (*) - Ronaldo Cagiano

Em meio
aos que vêm e vão
este circo de corpos
são o seu lar.


Motorista, cobrador
em constante homilia
desafiam milhas
de vida
em picadeiro ambulante.

No tênue fio das viagens
navalhas na carne
corpos que se cruzam
e corações que não se entendem.


A noite, ilha invisível,
é a única oferta:
estação provisória
para suas almas sem lar.

(*) ônibus que circula nas Asas Sul e Norte, de Brasília

Ronaldo Cagiano

18 de fevereiro de 2008

Cataguases -Ascânio Lopes

para Carlos Drummond de Andrade

Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglêsa de céu esfumaçado, cheio de chaminés negras;
Nem Ouro Prêto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a tradição das coisas
[ que já esquecemos;
Nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar, para não desmanchar o passado
[ arrumadinho;
Nem Estrêla do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio barrento;
Nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas de gente que não
[ pretende ficar.
Nã-o ! Cataguazes... Há coisa mais bela e serena oculta
[ nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá jamais o que
[ desejas, o que serás.
Não és do passado, não és do futuro; não tens idade...
Só sei que és
a mais mineira cidade de Minas Gerais...
Nem geometria, nem estilo europeu, nem invasão americana
[ de bangalôs derniecri.
Tuas casas são largas casas mineiras feitas na previsão de
muitos hóspedes.
Não há em ti o terror das cidades plantadas na mata virgem.
Nem ramerrão dos bondes atrasados, cheios de gente apressada.
Nem os dísticos de aqui estêve aqui aconteceu.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em burricos,
os padeiros deixam o pão à janela (cidade mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de ter só gente conhecida faz teu habitante voltar-se
[ para cumprimentar todos que passam.
Delícia de não encontrar estrangeiros de olhar agudo, esperto
[ mau, a suspeitar riquezas nas terras.
Alegria dos Fordes brincando (são dois) na praça.
(Depois vão dormir juntinhos numa só garagem).
Jacaré !
João Arara!
João Gostoso !
teus tipos populares.
A criançada atira-lhe pedras e êles se voltam imprecando.
Rondas alegres de meninas nas ruas, às tardes, sem perigo
[ de veículos,
papagaios que se embaraçam nos fios de luz, balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas de chegada do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia hora só antes
[ no cinema.
Ar môrno e sensual de voluptuosidade gostosa que vibra
nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras pingam nos
[ passantes
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a apena passar,
que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando.
Em ti se dorme tranquilo sem guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ranram dos sapos,
o sono é tranquilo como o de uma criança de colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude,
nem pêso inútil de recordações
Mas confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas,
nem ficam eternas.

Ascânio Lopes (Ubá 1906 - Cataguases 1929)

12 de fevereiro de 2008

Estância nº 1 - Emerson Teixeira

Bastou a indecisão de uma vírgula

para que se perdesse o elo entre as palavras

e aí, por séculos e séculos

só se ouviu o tique taque nervoso do meu relógio


Emerson Teixeira

11 de fevereiro de 2008

Um poema de Antônio Perin


Cachoeira


Ao amigo do Vicente Costa

Lágrimas escorregam por entre seios sem mamilos

Explodem em cristais num fundo negro

Repousam silenciosas como quartzo na quadra seguinte

Pés sobre folhas e galhos secos tecem um lamento

Um falo amarelo estica-se sobre tudo com seus pelos verdes

Imponente o canibal viaja nas mensagens de sua canabis.

(Distrito da Glória – 21.07.2002)

Antônio Perin