29 de outubro de 2008

25 anos sem Ana Cristina

Ana C. nasceu em 1952 e morou no Rio, em Niterói e no exterior. Ficou conhecida pela poesia confessional, tendo sido projetada por A Teus Pés, lançado em 82. Além de escrever seus poemas, atuou como tradutora (verteu para o português Sylvia Plath e Emily Dickinson), publicou em jornais e trabalhou na televisão.
Olho muito tempo...
Olho muito tempo o corpo de um poema
até perder de vista o que não seja corpo
e sentir separado dentre os dentes
um filete de sangue
nas gengivas

16 de outubro de 2008

De fininho

Dentro do elevador pela manhã
a caminho da rua (ai, meu Deus!)
penso nas minhas pendências proibidas:
desemprenhar no papel dois poemas que me
incomodam
como calo inflamado no dedo do pé
como cutícula solta no dedo da mão
terminar de ler um livro ora pela metade
cujo final ao longe me desafia os olhos e a paciência
rever dois filmes - Era uma vez no oeste e Fome de viver
(obras de arte)
que nada têm a ver com a nossa fome e o nosso jeito
faroeste de ser
penso ainda no elevador nas duas vidas que tenho para levar
na que fica presa no peito e por lá vai sendo esquecida
pela impossibilidade de crer e
penso apreensivo na real, na vida forçada de cada dia onde
tenho que pagar as contas e
os pecados que não cometi
onde tenho que manter a calma e
a educação, quiçá o bom humor
a boa convivência - ou a hipocrisia?
onde tenho que conter a ira e
travar a língua
onde tenho que fazer-me de trouxa e
ficar esperto e
esquivar-me da bala
esquivar-me da faca
esquivar-me do beijo
esquivar-me do outro
safar-me de tudo
onde eu devo ser ninguém
para conseguir sair vivo
de fininho
no final.

Zeca Junqueira

Fé e luta

Agnóstico entre pregadores alucinados
sentia-me iluminista nas trevas da modernidade.

Vendo aqueles mantos cor de açafrão
enfrentando o opressor e feroz dragão
apenas com a força de sua fé budista
resgatou em mim a fé e a vergonha.
Não a fé em um ser sobrenatural
mas na que brota da própria crença.

Ateus cristãos e judeus
e tantos outros em suas fés
lutaram contra o nazismo...
o franquismo... o salazarismo...
Envergonho-me de minha covardia
diante de meus nanismos.


José Antonio Pereira

13 de outubro de 2008

Cidade

*Emanuel Medeiros
Em memória do amigo Pingo, que nos deixou nesse outubro

“ A verdade é feia. Temos a arte a fim de que a verdade não nos mate.”

(Friedrich Nietzsche.)
Avisto a cidade – o dia surgido,
planalto seco.

Já não consigo contemplar a vida,
soberano exílio,
em busca de outro mar,
da penúltima gaivota,
da ilha do coração ausente.

Sim, avisto a cidade,
céu sem mediação (parece um teto),
azul pleno,
sol de outubro,
à espera do cheiro de terra molhada depois da seca
(mangueiras em flor),
sempre esperando, sempre.

Avisto a cidade,
os primeiros ruídos,
o cerrado e uma flor retorcida,
um cheiro de morte,
sim, aquele cheiro.

A morte ganha sempre.
(Tem mais tempo.)

Então: uma noite sucedendo-se à outra noite:
sempre.


Brasília, outubro de 2008
*Emanuel Medeiros Vieira