22 de junho de 2010

Autoretrato

Quando nasci, uma parteira,
dessas que nos inauguram
na febre dos dias, disse:
Vai, menino! ser alguém no mundo,
saia de Cataguases
para não ficares menor que ela.

Contemplo a sentença
da ampulheta:
em tudo há urgência
e sinais de partir,
apesar da gente vagarosa do interior
do provincianismo das conversas imutáveis
da mediocridade dos que enterram a solidão
numa mesa de bar
com seus copos cheios
e suas histórias vazias


que há tanto cansaço e maldade
e que apenas duas mãos
são insuficientes
para suportar o peso dos sentimentos
e a carga abissal mundo.

Meu coração inquiridor
conheceu bem cedo
as fraquezas de Deus
a hipocrisia das religiões

e o susto de viver
- muito mais vasto que toda a fé -
ensinou-me a rimar
indigência com desamor.

Não, não havia solução
apesar do coração vasto
e de sua ciência em reconhecer
a verdade
o luto
o conhaque
o diabo
a política
a globalização.

Alguns anos vivi
em Minas
outros tantos
(que me deram régua e compasso)
passei em Brasília,
mas foi dentro de mim
nas entranhas férreas
da alma incontida
que descobri
a explicação farta da vida:

a flor no asfalto
a náusea do existir
abriram o mar vermelho
de minhas dúvidas
para que eu saísse
do cativeiro das idéias prontas
e da moral obesa e sonolenta
dos que dividem as coisas
em impiedade e santificação.

Não tive ouro nem gado,
muito menos fazendas
mas sinto-me mal e compulsório
nesse rebanho catatônico,
nesse curral de bancários
em que me lançou o destino.

Em vão, falo de livros e filmes
em vão vejo meus colegas adormecerem
quando o assunto é Kafka ou Truffaut.
Ou se falo de Fellini ou Thomas Mann,
provoco um 11 de setembro
em suas passivas e alienadas
consciências,
pois seus horizontes não passam do
Maracanã ou
dos circos de pagode.

Esse lugar em que me (des)habito
fronteiriço do hospício e do calabouço,
é uma Itabira pesada demais,
a pedra no caminho
de josés sem agora.

Trabalho com engulhos
nesse mundo coisifcado e caduco
e se a orquídea e a caliandra
ainda sobrevivem
ao agreste desterro
ou às cinzas do passado,
para ressuscitar nos jardins de Laura,
é porque nos meus olhos a revolta
tem a carga de uma bomba
apesar de tantos problemas
emergirem sem solução
regidos força do impasse.

As pessoas continuam as mesmas,
em São Paulo ou Istambul
às margens do Bósforo
ou ao largo do fétido Pomba
no aislamiento da Patagônia
ou numa agreste Catamarca:

sem a mínima esperança
de passar o Jordão
ou colher o pão dormido
na já desbotada antemanhã.

Os homens de negócios
seguem com seu espírito,
convictos mas esquálidos,
não leram Joyce
nem sabem que Maiakovski
prenunciou no Brasil
a existência do único cidadão feliz
mas eles continuam tão certos de suas cifras
enquanto a safra de idiotas
engorda o mundo
e não sentem remorso
paixão
nem pânico
e prosseguem sem nenhuma ênfase.

A noite chega novamente
mas ela é anterior aos meus cansaços,
a ruína dos ossos
não me impede de andar
de mãos dadas
com um grande amor.

É preciso dinamitar a realidade
que nos suicida a cada dia
e instaura a trôpega
imaginação dos moribundos.
Ronaldo Cagiano (São Paulo- SP)

5 comentários:

Francisco Marcelo Cabral disse...

Pela mão parafrásica de Drummond, Cagiano refaz um percurso de mal estar no mundo, sobre o qual destila sua amargura e frustração, sem contudo renunciar à esperança de "andar de mãos dadas com um grande amor" - verso que é o o resgate de todo o clima de tragédia e náusea em que o poema desenvolve os brilhos de suas contundentes imagens e metáforas.

Enfim, um poema armado para nenhuma batalha, uma lamentação magoada de um poeta sensível, deslocado de um "mundo "em que se sente estrangeiro, "nel mezzo del camin" de sua vida

Anônimo disse...

Es un gran poema, bello y elegante, y a la vez visceral; el poeta nos habla con el corazón en la mano. Felicitaciones a Ronaldo y al Blog por la publicación.

Un cordial saludo desde Buenos Aires
Mariano Shifman

Ronaldo Werneck disse...

Bravo, Cagiano!
Não há mesmo "mal estar"
(Drummond apud Chico Cabral)
que nos impeça prosseguir
no tempo que é quando
(vinicius sim, "finicius")
de mãos dadas
com um novo amor

Anônimo disse...

Chico Cabral e Ronaldo Werneck,
a palavra de vocês a(s)cende um farol novo em meus versos. Como bem percebera, esse diálogo com Drummond foi um exercício nostálgico - entre amargura e paixão - sobre esse deslocamento em que escrevivemos.Grato,RCagiano

Anônimo disse...

Chico Cabral e Ronaldo Werneck,
a palavra de vocês a(s)cende um farol novo em meus versos. Como bem percebera, esse diálogo com Drummond foi um exercício nostálgico - entre amargura e paixão - sobre esse deslocamento em que escrevivemos.Grato,RCagiano