26 de maio de 2008

Ainda mais - Francisco Cabral



Escrevo a língua do meu avô
e tenho a sua cara
no espelho fugidio onde busco
as marcas do que eu sou.

Vejo o rio passar
Os peixes das palavras boquejam espuma e água suja
no sulcado perau dos versos
o poema flui arrastando em sua calda
a mudez dos afogados e os gritos
dos pescadores de areia.

Um passo atrás, que eu possa ver
essa procissão que se arrasta
desde muito antes do ano de mil
novecentos e trinta,quando eu mesmo
vazei num jato de sangue e soro
e gritei pela primeira vez: eu
- e não, e nunca na verdade, fui ouvido.

Um passo atrás
que o sol está secando as chuvas do poente
um corpo vai-se atirar na direção do naufrágio
e a chama de uma vela
num barquinho sem leme
será enviada a procurá-lo

Escrevo a língua do meu avô
sem sua permissão,
por isso apenas busco seduzir
os fantasmas que me visitam
por isso venho até o rio
para olhá-lo nos olhos
e numa canção inaudível
berçar os seres amáveis que o habitam
e se coçam nas facas dos peixes

Vejo o rio passar e mal me vejo
enquanto envelheço à sua beira
A luz e o silêncio em mim sabem a vida
e enquanto respiro
tudo o que não entendo faz sentido.

*Francisco Marcelo Cabral

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