28 de maio de 2008

15 de maio 1908 - Cem anos de Guilhermino Cesar



Guilhermino Cesar

Cem anos do nascimento do

maior poeta gaúcho de Cataguases

Uai!


Uai! é o que se diz, se o tempo vai
ou fica preso em nós, e lastimável.
Uai! para a manhã, o outono, o espasmo,
para os muros da infância e o amor sumido.
dizer uai! uai! agora, e nunca
dizer senão uai! aos que fugiram
tempos do mesmo uai! desirmanados.



Ilustração Altamir Soares

26 de maio de 2008

Ainda mais - Francisco Cabral



Escrevo a língua do meu avô
e tenho a sua cara
no espelho fugidio onde busco
as marcas do que eu sou.

Vejo o rio passar
Os peixes das palavras boquejam espuma e água suja
no sulcado perau dos versos
o poema flui arrastando em sua calda
a mudez dos afogados e os gritos
dos pescadores de areia.

Um passo atrás, que eu possa ver
essa procissão que se arrasta
desde muito antes do ano de mil
novecentos e trinta,quando eu mesmo
vazei num jato de sangue e soro
e gritei pela primeira vez: eu
- e não, e nunca na verdade, fui ouvido.

Um passo atrás
que o sol está secando as chuvas do poente
um corpo vai-se atirar na direção do naufrágio
e a chama de uma vela
num barquinho sem leme
será enviada a procurá-lo

Escrevo a língua do meu avô
sem sua permissão,
por isso apenas busco seduzir
os fantasmas que me visitam
por isso venho até o rio
para olhá-lo nos olhos
e numa canção inaudível
berçar os seres amáveis que o habitam
e se coçam nas facas dos peixes

Vejo o rio passar e mal me vejo
enquanto envelheço à sua beira
A luz e o silêncio em mim sabem a vida
e enquanto respiro
tudo o que não entendo faz sentido.

*Francisco Marcelo Cabral

21 de maio de 2008

Desorientação - Emerson Teixeira

Não me fale mais no pós-moderno.
Não quero saber se há ligação
entre um microcomputador
e um sex shop.
Ora, deixe haver.
Se a massa consumista é melancólica
(posto que fascinada),
deixe ser.
Assim, você acaba por me deixar mais niilista
e, ainda que mal possa perguntar:
há mais alguma novidade no ar,
além desta folhinha que aprendeu a surfar?
Não ligue para os filósofos,
você é muito sensível.

Emerson Teixeira

5 de maio de 2008

Qual o verso? - Zeca Junqueira

O que pode mais:
o beija-flor ou o avião de guerra
a flor ou a bala
o beijo ou o soco
a passeata calada de branco ou
o chute gritado da rebelião?

O que realmente pode mais há muito,
muito tempo
o que pode mais?

Às vezes me sinto tentado a trocar a caneta com a qual escrevo
(por vocação ou covardia, não sei)
por algo mais convincente – e contundente:
um porrete, por exemplo.


Zeca Junqueira

De volta a casa paterna - Emerson Teixeira

Esta sentença tem um gosto de epígrafe
e serve tão bem ao meu estado d’alma...
O meu relógio parou com os ponteiros andando...
De repente a vida não segue...
pararam todos os relógios?
É isto:
Hoje não estou aqui:
Ontem sim, estive lá.


Emerson Teixeira

2 de maio de 2008

Katchabadi - Antônio Perin

A Said Ghaffor
Mal recriada, favela de Islamabad
onde treme a dor do desterro
verões de febre amarela
cor de pele e fome
invernos tilintantes de gripes.
A alma nostálgica do exilado
Nosso país era lindo.
A dureza do campo de refugiados
É terrível a vida aqui.
Depois da soviética ocupação
irmão luta contra irmão
Alá jogou o talibã sobre o afegão.
Pragmático o velho com sabedoria
Problemas atuais somo imparciais.
Sempre o pior está por vir.


Antônio Perin

Said Ghaffor, refugiado de 60 anos, forte mas de ombros arqueados
e espessa barba branca, falando com jornalistas num campo de
refugiados no Paquistão. (Notícia de jornal 02.10.2001 )
Katchabadi nome do campo de refugiados mistura urdu falado no Paquistão
e pashtu falado no Afeganistão significa aproximadamente “mal recriada”.

Pela noite - Zeca Junqueira

Inspirado no poema
Fuga sobre a morte,
de Paul Celan
Por que a poesia de Paul Celan
não faiscou nas cinzas dele que desistia,
conduzindo-o assim para fora, das
cinzas ao carvão,
aquecendo-o até torná-lo brasa e fogueira,
por que a insurreta poesia não incendiou a noite de Celan
onde persistiam a tocar os escuros violinos e
branqueou o leite-breu que continuava a enojá-lo,
por que a palavra que vinha pela noite e queria brilhar
não ateou fogo na casa do homem que chamava os mastins, e
o tisnou, e aos seus cães, e ao campo todo
por que o levante da poesia não se deu e
não encheu a cova funda cavada no chão de Celan e
não esmagou a cabeça das serpentes da morte de olhos azuis
que o perseguiam, e
não o libertou, e não o livrou do veneno e do suicídio,
por que a poesia de Celan não o elevou das cinzas ao incêndio,
por que a poesia de Celan enredou-se no silêncio e entregou-o
enganada à cova grande nas nuvens onde não se deita ruim
- e onde em tempos já de paz (não para ele) Celan aceitou deitar
enquanto permaneciam tocando cada vez mais escuro em sua
alma os malditos violinos?
Zeca Junqueira

Lendo Emily Dickinson - Emanuel Medeiros

Poderia ser 1830,
quando nasceste,
mas é 2008,
chuvoso domingo de março,
não publicaste livro em vida (o que menos importa).
“Ela chegou afinal, mais ágil porém a Morte
Havia ocupado a casa:
A pálida mobília já disposta,
Junto com sua palidez metálica” (...).
Só poeira e esquecimento,
nada dura,
Felicidade efêmera – ler teus poemas, Emily.
O domingo fluindo,
tempo: linha reta de eterna agonia.
Não existe presente, só passado.
Nem futuro.
A namorada de 1968 jaz num cemitério de aldeia.
“Empoeirado se mostra o mundo
Ao nos deitarmos para morrer”.
Sim: “Tão longe da compaixão quanto a queixa
Tão frio às palavras quanto a pedra.
Tão insensível à Revelação
Como se meu ofício fosse nada.”
O empenho diário é inútil?
(Para os outros.)
Ah, cidade que me atirou seu presságio
adverso.
Terá termo a espera?
Deve-se matar a morte que sobre nós se abate.
(Peço desculpas aos poetas que pilhei:
confluências.)
Aqui jaz a inocência:
a morte não existe, nós é que morremos.

(Brasília, março de 2008)



Emanuel Medeiros (Brasília DF)