18 de fevereiro de 2008

Cataguases -Ascânio Lopes

para Carlos Drummond de Andrade

Nem Belo Horizonte, colcha de retalhos iguais,
cidade européia de ruas retas, árvores certas,
casas simétricas,
crepúsculos bonitos, sempre bonitos;
Nem Juiz de Fora. Ruído. Rumor.
Apitos. Klaxons.
Cidade inglêsa de céu esfumaçado, cheio de chaminés negras;
Nem Ouro Prêto, cidade morta,
Bruges sem Rodenbach,
onde estudantes passadistas continuam a tradição das coisas
[ que já esquecemos;
Nem Sabará, cidade relíquia,
onde não se pode tocar, para não desmanchar o passado
[ arrumadinho;
Nem Estrêla do Sul, a sonhar com tesouros,
tesouros nos cascalhos extintos de seu rio barrento;
Nem Uberaba, nem, nem, cidades arrivistas de gente que não
[ pretende ficar.
Nã-o ! Cataguazes... Há coisa mais bela e serena oculta
[ nos teus flancos.
Nas tuas ruas brinca a inconsciência das cidades
que nunca foram, que não cuidam de ser.
Não sabes, não sei, ninguém compreenderá jamais o que
[ desejas, o que serás.
Não és do passado, não és do futuro; não tens idade...
Só sei que és
a mais mineira cidade de Minas Gerais...
Nem geometria, nem estilo europeu, nem invasão americana
[ de bangalôs derniecri.
Tuas casas são largas casas mineiras feitas na previsão de
muitos hóspedes.
Não há em ti o terror das cidades plantadas na mata virgem.
Nem ramerrão dos bondes atrasados, cheios de gente apressada.
Nem os dísticos de aqui estêve aqui aconteceu.
Nem o tintim áspero dos padeiros.
Nem a buzina incômoda dos tintureiros.
Teus leiteiros ainda levam o leite em burricos,
os padeiros deixam o pão à janela (cidade mineira).
Teu amanhecer é suave.
Que alegria de ter só gente conhecida faz teu habitante voltar-se
[ para cumprimentar todos que passam.
Delícia de não encontrar estrangeiros de olhar agudo, esperto
[ mau, a suspeitar riquezas nas terras.
Alegria dos Fordes brincando (são dois) na praça.
(Depois vão dormir juntinhos numa só garagem).
Jacaré !
João Arara!
João Gostoso !
teus tipos populares.
A criançada atira-lhe pedras e êles se voltam imprecando.
Rondas alegres de meninas nas ruas, às tardes, sem perigo
[ de veículos,
papagaios que se embaraçam nos fios de luz, balões que sobem,
foguetes obrigatórios nas festas de chegada do chefe político.
Jardins onde meninas ariscas passeiam meia hora só antes
[ no cinema.
Ar môrno e sensual de voluptuosidade gostosa que vibra
nas tuas tardes chuvosas, quando as goteiras pingam nos
[ passantes
e batem isócronas nos passeios furados.
Há em ti a delícia da vida que passa porque vale a apena passar,
que passa sem dar por isso, sem supor que se vai transformando.
Em ti se dorme tranquilo sem guardas-noturnos.
Mas com o cricri dos grilos,
o ranram dos sapos,
o sono é tranquilo como o de uma criança de colo.
Vale a pena viver em ti.
Nem inquietude,
nem pêso inútil de recordações
Mas confiança que nasce das coisas que não mudam bruscas,
nem ficam eternas.

Ascânio Lopes (Ubá 1906 - Cataguases 1929)

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